Fazer as pessoas repensarem seus hábitos de consumo e entenderem a importância da compra com ética e, ao mesmo tempo fortalecer artistas, designers e artesãos brasileiros ajudando no marketing e nas vendas para que eles só se preocupem com o que fazem de melhor: criar. Esta é a missão da Mais Alma, marketplace com uma seleção afinada de produtos e produtores na área de moda, decoração e, futuramente, beleza.
O diferente está não só em unir e amplificar o alcance do trabalho de criadores brasileiros, mas no que há por trás dessa curadoria. Ali só entram produtos feitos com matérias-primas e métodos de produção mais sustentáveis, de design atemporal, fruto de produção em pequena escala no Brasil e marcas preocupadas em estabelecer relações de respeito com seus fornecedores. Estes são os pilares da “compra com ética” e, como elas dizem, a alma da empresa.
Por trás da empreitada estão as paulistas e colegas de faculdade Ana Paula Fracasso, 33, e Julia Bedolo, 37. Elas já tinham experiência profissional, mas apanharam bastante até entender como fazer o negócio funcionar sem os investimentos milionários dos grandes marketplaces do mercado. Programação, uma importante linha dorsal, por exemplo, também não era a expertise de nenhuma das duas.
A Mais Alma é um marketplace. Estruturalmente, porém, difere de quase todos os outros, pois não há estoques consignados. As sócias fazem a intermediação da venda e o envio das peças é realizado pelas marcas direto para os clientes — aliviando, para os criadores, o peso da venda e do marketing. Também não é um marketplace comum porque os lojistas não cadastram e sobem a própria loja. Ali, a curadoria é a “alma” do negócio. Além de selecionar as peças por qualidade, um dos principais objetivos da empresa é credibilizar os pequenos produtores que já se preocupam com uma comércio com ética e responsabilidade em toda a cadeia de produção.
Um percentual de cada venda é retido para custear a operação. Dentro desse percentual estão inclusos os serviços pelos quais Julia e Ana se responsabilizam: gastos com operadoras de cartão de crédito, emissão de boleto, manutenção e hospedagem da loja online, mídia patrocinada nas redes sociais, parcerias para divulgação, ações de marketing e fitas personalizadas para embalar as caixas de envio. É deste percentual que vem um faturamento médio de 11 mil reais por mês.
A Mais Alma tem as seções “moda”, “casa”, “infantil” e “sem gênero” (tanto para moda como acessórios). Conta, hoje, com 26 lojas de criativos selecionados, sobre os quais é possível saber a história e mais detalhes numa área específica do site.
Como Tudo Começou
Ana cursou um ano de Administração, depois migrou para o Turismo (na Anhembi Morumbi, onde conheceu Julia). Se formou, mas não trabalhou muito na área. Antes dos 30 anos, viu-se coordenando cerca de 60 funcionários em um salão de beleza bastante lucrativo junto com uma sócia. “Eu fazia planejamento e ajudava os funcionários a crescer com o salão. O salão já andava sozinho, eu gostava do que fazia, ganhava bem, mas faltava alguma coisa. Foi quando resolvi vender minha parte”, conta.
Neste tempo, Julia, já formada em Turismo, pulava de emprego em emprego tentando achar algo que fizesse sentido para ela. Trabalhou em duas multinacionais na área de produção de eventos, depois em comunicação, mas diz que se sentia cada vez mais infeliz, mesmo com uma renda estável. Aproveitou o namoro com um carioca e o fato de estar infeliz no trabalho para pedir a conta. Fez as malas e mudou-se para o Rio de Janeiro.
Enquanto uma procurava emprego na capital fluminense, a outra terminava um sabático sem saber ainda o que fazer. A única certeza, conta Ana, era não abrir mão de unir trabalho e paixão, promovendo mudanças positivas no meio do caminho. Amante do design brasileiro, ela viu uma brecha no mercado nacional de fortalecer os fazedores espalhados pelo Brasil. “Em 2014 não existia essa quantidade de feiras espalhadas pelo país e o número de expositores era drasticamente menor”, conta.
Nessa época, ela ligou para Julia para compartilhar sua ideia do que seria a primeira versão da Mais Alma. Ela resume essa essência: “Incentivar marcas criativas que acrescentam design ao trabalho artesanal, tornando atual um modelo de produção que esteja intimamente ligado à cultura, à tradição e ao saber fazer”.
Juntas, as duas chegaram à conclusão de que o Rio de Janeiro era o lugar certo para a empresa florescer. Foi a vez de Ana fazer as malas e, assim, elas duas iniciaram um ano de trabalho na construção do plano de negócios e planejamento antes do lançamento do e-commerce, no final de 2015.
Começar, Mesmo Sem Estar Tão Preparada
Logo no início da jornada, elas perceberam que fazer o planejamento, conquistar os primeiros clientes e firmar as parcerias com artistas, designers e artesãos não seria o problema. A dificuldade estava no modelo de negócio delas: um marketplace que opera sem estoque mas com envio centralizado. O “xis” da questão era — e ainda é — o fato de que só gigantes do setor poderem investir em uma plataforma capaz de unificar o frete a partir de múltiplos remetentes sem fazer o cliente pagar pelas compras separadamente.
Neste momento decisivo de consolidação da operação, por falta de conhecimento e de opções acessíveis disponíveis no mercado, a Mais Alma deu um grande passo… errado. As sócias investiram um bom dinheiro na construção de uma plataforma digital que acabou se mostrando ineficaz e nunca sequer foi ao ar. Com o tombo, elas se viram obrigadas a refazer a plataforma do zero. Fizeram como puderam, uma versão bastante simples, e lançaram o e-commerce mesmo assim, como conta Julia:
A gente sabia que o primeiro site tinha problemas técnicos, mas naquela hora precisávamos aparecer
Julia Bedolo
Era isso. E elas foram para o tudo ou nada. A equipe inicialmente, contratada precisou ser dispensada. Para cortar custos, elas também saíram do coworking onde tinham iniciado as operações e optaram pelo home office. No meio de 2016, Julia ficou sem reservas e precisou arrumar um trabalho fixo. À noite ela tocava o marketing e as mídias sociais da Mais Alma, enquanto Ana trabalhava full time nos contatos com os artistas e curadoria, na venda e numa terceira plataforma (para substituir a problemática que estava no ar), que seria lançada no fim de 2016.
É comum empreendedores olharem primeiro para dentro, para a vontade de fazer, e só depois checar as condições macro. Desde o lançamento da Mais Alma, a economia brasileira não esteve favorável (para ninguém, digamos), mas, ao mesmo tempo, o nicho onde o negócio delas está inserido atravessa uma fase de ascensão: de uns poucos anos para cá o consumo consciente, o comprar do pequeno e a desaceleração do consumismo começou a virar pauta. Uma consequência prática disso é que feiras coletivas promovendo designers e artistas independentes começaram a se proliferar pelo país — e a brecha no online ainda existia.
SERÁ QUE VAI DAR CERTO? OU MELHOR PARAR?
O mercado de nicho em ascensão, no entanto, não as impediu de questionarem se realmente valia a pena manter o negócio diante dos problemas para realizar o que sonharam. “Nem todo mundo fala, mas a verdade é que no Brasil a venda de moda online ainda é embrionária. As pessoas não estão amplamente acostumadas a comprar a maioria dos produtos que a gente vende online, como moda, e têm receio”, afirma Ana. Mas elas tinham seus trunfos, e foi exatamente o público já conquistado, tanto de designers e artistas quanto de consumidores, que as fez seguir em frente.
Decididas a dar uma segunda chance ao projeto, elas foram investigar se o esquema de marketplace era, de fato, o melhor. “Analisamos e entendemos que para escalonar como queremos, alcançar mais pessoas e fortalecer mais artistas, o marketplace é o modelo ideal para nós”, conta Ana. Por isso, em dezembro, elas foram para uma nova plataforma, a terceira no total, porém finalmente mais apta e robusta para atender as necessidades da Mais Alma. Segundo as sócias, ainda não é o ideal, mas está no caminho.
“Entendemos que é importante aumentar a quantidade de artistas e designers dentro da Mais Alma porque assim conseguimos criar uma identidade forte, valorizar o mercado e a proposta do consumo consciente”, diz Ana. Porém, aumentar a oferta não é tão simples. Por estarem no topo da curva, elas operam em um nicho ainda não muito bem desenvolvido e compreendido no país. Apesar do grande número de pequenas marcas e designers independentes produzindo no Brasil, não é a maioria que se alinha aos pilares da compra com ética utilizados — e este é um outro desafio do negócio, como conta Julia:
A gente encontra produtos muito bonitos e vendáveis, mas com pouca ou nenhuma preocupação com os métodos de produção. Assim, não pegamos.
Julia Bedolo
Elas estão no jogo, e topam esperar esse amadurecimento. Por estarem, também, ainda se desenvolvendo junto com o mercado, algo que anima muito as sócias é justamente ver o crescimento do nicho. “Muitas marcas interessadas em vender na Mais Alma estão dispostas a melhorar produção”, conta Julia. Assim, o negócio da dupla tem funcionado também como uma ponte, colocando designers em contato com outros designers, cooperativas e associações. “Se a gente conseguir mostrar esse caminho para as marcas, nossa missão fica mais completa ainda”, diz Ana.
No último ano, apesar dos gargalos e dificuldades, a Mais Alma faturou 120 mil reais. O caminho em frente não fácil, mas elas estão cientes disso. A longo prazo, querem fortalecer ainda mais a missão social da empresa, usando o design como uma ferramenta de transformação social. Outra meta, e essa deve acontecer no médio prazo, estimam, é mirar no mercado internacional.
Mas, até lá, Julia e Ana estão focando mesmo em aumentar a oferta de produtos à disposição e em lidar com um curioso paradoxo: ter de equilibrar consumo consciente com a necessidade de gerar receita. Elas querem (precisam) vender, entretanto fogem de técnicas que incentivem ou reforcem a compra por impulso. Por exemplo, substituem o marketing tradicional por um posicionamento mais humanizado, focando em destacar a essência de cada produto. “O nosso objetivo com as vendas é fazer as pessoas pensarem. Fazer que comprem na Mais Alma, sim, mas porque realmente estão repensando a maneira de consumir”, diz Ana. Quem disse que colocar a alma no negócio é algo assim, tão pá pum? Ainda bem que não.