A moda sempre foi conhecida por saber guardar bem seus segredos. Em um mercado guiado por tendências e diferenciação, a chave do sucesso das marcas de moda era (também) manter seus designs e seus fornecedores guardados a sete chaves. Com a chegada da internet, das mídias sociais, do compartilhamento instantâneo e da globalização, esses conceitos que guiaram a moda por anos estão se desfazendo. Entramos numa era de transparência radical onde palavras como confidencialidade, sigilo e até mesmo exclusividade têm pouco espaço.
Deixar-se ver de forma tão desnuda é algo mais complexo do que a moda gostaria de imaginar. O tratamento de modelos em bastidores de desfiles, os impactos ambientais da produção de tecidos, a lida com funcionários e até mesmo a forma de cuidar do lixo, nada fica escondido dos olhos do público ou escapa da inquisição da Internet.
Mas para além das cadeias de suprimentos e modelos de negócios, a era que decreta o fim dos segredos coloca a própria cultura empresarial em jogo. Campanhas “empoderadoras” rapidamente são questionadas frente a realidades contraditórias que revelam desigualdade nos cargos dentro da empresa, exploração de mulheres ou casos de assédio sendo jogados para debaixo do tapete. As possibilidades de fingir valores encolhem-se neste novo momento, e basta uma publicação feita por algum funcionário da empresa se tornar viral para virar toda uma companhia de cabeça para baixo, como aconteceu com o Uber, por exemplo.
Empresas dispostas a preservar suas marcas e seu respeito precisarão se manter ligadas à forma de fazer negócios, como nunca antes. Belas campanhas deixam de ser suficientes para atrair os olhares e o desejo de compra, e deixam também de ser o principal meio como as marcas moldam sua imagem perante o público. O que a empresa é se sobrepõe ao que a empresa mostra ser.
Transparência engatinhando
Não é um caminho fácil de ser trilhado porque, como sabemos, muito do que as marcas têm para mostrar atualmente não é bonito: uma cadeia de suprimentos opaca, pontuada por poluição ambiental, violação de direitos humanos e praticamente nenhuma noção de como lidar com as externalidades negativas inerentes à própria existência e, principalmente, ao modelo industrial e linear de fazer negócios, antes pouquíssimo questionado. Por isso não é de se estranhar que, ao mesmo tempo em que marcas entendem a necessidade de um posicionamento livre de meias-verdades e começam a adotá-lo, ainda há a tentativa de manter alguns segredos, mesmo sem sucesso.
Pelo amor ou pela dor, a moda está aprendendo que a transparência radical é uma questão de diferenciação hoje e sobrevivência amanhã.
Muitas marcas já estão protagonizando essa mudança de posicionamento e começando por onde têm mais controle: os preços dos seus produtos. Um dos primeiros passos rumo à “caixa de vidro” dos negócios de moda começou com a abertura de custos e lucro por parte das marcas. Quanto uma marca realmente ganha e quanto ela realmente gasta na produção de uma peça? Ao revelar os custos e lucros da produção e venda, as marcas ajudam a esclarecer sobre o que está embutido no preço final de um produto. O que antes era uma matemática obscura começa a fazer sentido para o consumidor.
Abrir a planilha é uma alternativa possível, barata e pouco arriscada para sair na frente nesse momento e mostrar diferenciação, principalmente entre marcas focadas nos millennials e na geração Z (públicos questionadores e exigentes quando o assunto é consumo), em um curto espaço de tempo. Os markups plausíveis tornam o diálogo mais fácil e verdadeiro.
O mercado de luxo também se ajusta a esse novo momento. A conversa sobre transparência global dos preços se tornou uma questão entre os conglomerados e multimarcas do segmento. Com o avanço do e-commerce, a prática de manter preços exorbitantes onde as marcas acreditam que o público está disposto a pagar mais deixou de fazer sentido. Em 2015, a Chanel nivelou seus preços globalmente. A Hermés, apesar de não nivelar preços, não onera seus valores e diz se manter fiel aos custos como base de precificação de um produto.
Falar abertamente sobre preço de um produto é só o primeiro passo. Aproximar as pessoas da realidade do negócio e da cultura empresarial pode e deve ir além. Quando você pensou que seria possível visitar o ateliê de um estilista e acompanhar seu dia de criação? Ou, ainda, imaginou a possibilidade de imergir dentro de uma oficina de costura clandestina em São Paulo para ver como, de fato, suas roupas são feitas? Nunca talvez. Mas criar esse tipo de laço e proximidade é outra ferramenta importante para empresas que lideram esta conversa.
E seja por realidade virtual ou pela maneira analógica de se estar presente, ambas aproximações causam impactos capazes de fortalecer (ou quebrar) a imagem de uma marca.
Na transparência radical não há pontos cegos
Custos abertos e visitas aos ateliês estão quase no fim do processo de produção. Hoje, a consciência coletiva dos impactos do consumo nos faz querer mais. Será que esse tecido tem origem em uma floresta desmatada? Será que é fruto de crueldade animal?
A rastreabilidade, que antes parecia impossível para uma cadeia produtiva globalizada, se torna premissa. Até as gigantes estão entrando neste jogo, cada uma à sua maneira.
Lançada em 2017, Arket, marca do grupo H&M, dispõe em seu e-commerce o nome e localização da fábrica que produziu cada uma das peças à venda. Uma informação inimaginável de ser compartilhada por uma grande marca há 10 ou até mesmo 5 anos atrás. Não à toa a própria H&M ainda não adotou essa estratégia, escolheu fazer isso apenas com uma marca nova e menor, provando que apesar dos avanços obtidos pelas corporações nos últimos anos, a rastreabilidade de produtos permanece um desafio.
O fato é que estamos vivendo em um momento em que a informação está prontamente disponível, no nosso alcance, o tempo todo. Os consumidores estão com fome de informações. Para nós não fornecê-las não é apenas irresponsável, mas, quando se trata da geração mais nova de compradores, também é ruim para os negócios.
Maxine Bédat, cofundadora da marca Zady
Tudo isso justifica uma tendência: marcas estão se aproximando de certificadoras como forma de garantir confiabilidade em seus processos. No ano passado, por exemplo, a holandesa C&A lançou no Brasil a campanha “Comece Pelo Básico” para promover a primeira linha de produtos de moda certificados desde a produção do algodão até a linha de costura. A parceria aconteceu com a organização Cradle to Cradle, a Ellen Macarthur Foundation e a iniciativa Fashion For Good. A promessa é que essa coleção seja a primeira iniciativa de um projeto global para transparência e sustentabilidade da corporação.
A tecnologia tem um papel crucial nesse momento e se mostra o próximo passo depois das certificações como conhecemos hoje. O blockchain pode ser usado para acompanhar o processo produtivo de uma peça desde a obtenção de matéria-prima. Ao transferir os dados do papel para um sistema descentralizado e altamente confiável, via QR-Code ou qualquer outra codificação digital, a etiqueta da peça final pode informar a origem do tecido, quem fez o transporte da fibra até a fiação, quem fiou e depois encaminhou para tecelagem, onde o tecido foi tingido, onde ele foi comprado e depois cortado e costurado para ser transformado em peça.
Parece impossível, mas a primeira marca de moda a rastrear uma peça de roupa via blockchain fez isso em 2017.
O primeiro produto de moda a ser rastreado via blockchain foi o jumper da estilista dinamarquesa Martine Jarlgaard. Uma parceria entre Provenance, A Transparent Company e a agência de inovação da London College of Fashion permitiu que cada etapa do processo, da tosa das alpacas para fiação da lã ao produto final, fosse registrada e rastreada via blockchain.
Transparência não é suficiente
Por mais que as marcas exponham informações sobre processos, fornecedores e cultura em seus relatórios anuais, muitas (principalmente as grandes) estão longe do dinamismo exigido pelo cliente do futuro próximo, que demandará informações a um clique, em letras garrafais e, principalmente, de maneira horizontal.
Mas o que tornará essa conversa, que só está começando, ainda mais desafiadora, é o fato da transparência por si só não bastar. O que significa uma peça ser feita na fábrica X ou Y? Ou ter um preço de custo de R$ 30 ou R$ 200? Para quem olha de fora (ou seja, todos os consumidores), não significa muita coisa.
Além de ser transparente, as marcas precisam enxergar pontos de ação e alavancagem para mudanças — e diálogos — reais.
Os compradores, especialmente os millennials, estão cada vez mais ansiosos para fazer escolhas sustentáveis e éticas, e o aumento da “transparência” é um passo para ajudá-los a fazê-lo, mas não é um fim em si mesmo.
Marc Bain, jornalista de moda
A transparência radical deve andar de mãos dadas com o entendimento de que falar não basta, é preciso fazer — e fazer implica em, talvez, demitir um CEO, redesenhar a cultura da empresa do zero, aliar-se a terceiros para fundamentar discursos de sustentabilidade com certificações e tecnologia… Mas, acima de tudo, implica em estar aberto para compreender que essa demanda já começou, e começou querendo mais do que apenas abrir as portas. Ela exige disposição para mexer nas mazelas que ficaram guardadas por décadas na caixa preta da indústria da moda.