Discursos de gênero e suas consequências práticas à luz da filosofia feminista

Confira a resenha de “Material Girls: Por que a realidade importa para o feminismo”, de Kathleen Stock

Em Material Girls: Por que a realidade importa para o feminismo, a filósofa Kathleen Stock faz um exame acessível sobre os discursos acerca de “gênero” e “identidade de gênero” e fornece uma exploração intelectual das consequências materiais da adoção irrestrita desse pensamento filosófico por parte de instituições e movimentos sociais em diversos países, sobretudo para mulheres, crianças e homossexuais. Embora suas análises se apoiem majoritariamente em informações, eventos e dados do Reino Unido, existe uma tendência global em tratar como fato a existência da identidade de gênero como característica inata, em contrapartida à leitura do sexo biológico como algo socialmente atribuído. Como consequência da adoção acrítica dessa perspectiva em diversos países, estabeleceu-se a prática de vetar vozes dissonantes e ignorar as consequências do apagamento legal e linguístico do sexo, inclusive na academia, que se desenvolveu a partir dos centros do capitalismo global, sobretudo nos Estados Unidos. Isso torna o exame de Stock relevante para além das fronteiras britânicas, permitindo que pessoas em diferentes países e contextos possam compreender as motivações ideológicas, estratégias discursivas e práticas políticas consistentes desse fenômeno.

Capa do livro “Material girls: por que a realidade importa para o feminismo”, de Kathleen Stock, publicada pela Editora Cassandra (Divulgação)

No primeiro capítulo, Kathleen Stock apresenta as principais afirmações filosóficas que compõem os quatro axiomas centrais do que a autora chama de “teoria da identidade de gênero” analisados ao longo do livro: 1. todas as pessoas têm um estado interior importante chamado identidade de gênero; 2. nas pessoas trans, essa identidade de gênero interna não corresponde ao sexo biológico (masculino e feminino); 3. é a identidade de gênero interna responsável por definir se o ser humano é homem ou mulher e 4. a existência de pessoas trans gera uma obrigação moral à toda a sociedade de reconhecer e proteger na lei a identidade de gênero, não o sexo biológico. Objetivando facilitar a compreensão do leitor, ela faz um resgate cronológico acerca dos oito momentos-chave para seu estabelecimento intelectual.  

Stock volta a 1949, retomando a célebre afirmação de Simone de Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-se mulher”, resgatada no final do século XX para sustentar a afirmação de que ser mulher não é o mesmo que nascer fêmea1. (p. 28). Embora Stock considere discutível a ideia de que Beauvoir buscava estabelecer uma separação conceitual entre ser do sexo feminino e ser mulher, as feministas da chamada segunda-onda, seguindo em alguma medida o pensamento da escritora francesa, passaram a utilizar o conceito de gênero para descrever expectativas sociais acerca da masculinidade e da feminilidade, fazendo nascer a distinção conceitual entre sexo e gênero. Tal divisão foi marcada pela elaboração da socióloga feminista britânica Ann Oakley que escreveu em 1972: “‘Sexo’ é uma palavra que se refere às diferenças biológicas entre macho e fêmea: a diferença visível na genitália, a diferença correspondente na função procriativa. ‘Gênero’, no entanto, é uma questão de cultura: refere-se à classificação social de ‘masculino’ e ‘feminino.’” (p. 29).   

Nas décadas posteriores, essa afirmação foi radicalizada e muitas feministas passaram a afirmar que ser mulher é uma condição puramente social, descartando qualquer implicação biológica particular. Ser mulher não seria um evento associado ao pertencimento ao sexo feminino, mas à sujeição a expectativas, normas e estereótipos de feminilidade, que são potencialmente internalizados pelos sujeitos desse grupo. Como consequência parcial dessa visão, há a suposição de que ser mulher ou homem é uma condição que depende não do sexo, mas do papel social que o sujeito introjeta em si. Para Stock, o resultado concreto desse pensamento foi a abertura de um espaço conceitual capaz de assumir que alguns homens podem ser, literalmente, entendidos como mulheres. 

Fundamentais para conceder certo caráter factual às elaborações conceituais acerca de sexo e gênero, foram as elaborações do psicólogo pediatra neozolandês John Money, do clínico norte-americano Robert Stoller e da professora de biologia e estudos de gênero da Universidade de Brown, nos EUA, Anne Fausto-Sterling. Money ficou conhecido por fazer uma “redesignação sexual” involuntária no menino David Reimer após uma circuncisão mal-feita. No decorrer do seu trabalho com Reimer, enfatizou os conceitos teóricos “papel de gênero” e “identidade de gênero”. O papel de gênero pode ser explicado como um conjunto de comportamentos considerados feminizados ou masculinizados que, em alguma medida, são adotados por crianças e adultos, uma formulação similar à de Beauvoir. Já a identidade de gênero é concebida como a internalização psicológica do papel de gênero, sendo “a experiência privada do papel de gênero” (p. 32). Dessa forma, os indivíduos podem estabelecer consigo mesmos uma identidade de gênero não correspondente ao próprio sexo. De forma similar, Stoller elaborou acerca das identidades de gênero “andróginas” ou “hermafroditas”, que para ele não seriam nem masculinas, nem femininas, podendo também ser ambas. Anne Fausto-Sterling, por sua vez, foi a responsável por, desde o final da década de 1980, assumir a perspectiva de que sexo é um espectro, utilizando como base argumentativa cinco tipos de Desvios de Desenvolvimento Sexual (DDS) para afirmar que o sexo “é um contínuo vasto e infinitamente maleável” (p. 35).  

No entanto, para Stock, quem realmente catapultou a cisão absoluta entre a realidade biológica e a cultura no pensamento filosófico da identidade de gênero foi a filósofa estadunidense Judith Butler, responsável por definir gênero como performance em 1990. Na mesma década, duas transformações simultâneas ocorrem: primeiro, forja-se a disciplina acadêmica da teoria queer; depois, os departamentos de estudos de mulheres e feministas, fundados nas décadas de 1970 e 1980, paulatinamente se transformam em departamentos de estudos de gênero. Nesse momento, 

feminismo passou a ser entendido como um projeto político destinado a criticar práticas de gênero “excludentes” em geral, e não à emancipação do sexo feminino especificamente – nem de forma alguma. (p. 36).

 Em seguida, a mulher trans e bióloga, também estadunidense, Julia Serano, passou a ganhar popularidade ao afirmar que é a identidade de gênero a característica responsável por definir se uma pessoa é homem ou mulher. Como explica Stock, essa conclusão é resultado da mistura das duas análises mencionadas anteriormente. Em 2007, os Princípios de Yogyakarta buscaram garantir que a identidade de gênero fosse tratada como um direito humano fundamental. Apesar de não ser compulsório a nível jurídico, diversos países e instituições – entre elas governos, associações e conselhos médicos e empresas – passaram a adotá-lo. De forma concomitante, Stock explica que se tornou cada vez mais comum que qualquer crítica intelectual à teoria da identidade de gênero fosse descartada como “transfobia”, “homofobia”, “transmisoginia”, “sexismo de oposição” e “ansiedade de gênero” (p. 44). Em 2008, a invenção do termo TERF – sigla para trans exclusionary radical feminist (“feminista radical transexcludente”) – e sua posterior popularização para se referir a pessoas com uma perspectiva crítica acerca do conjunto de ideias que constitui a teoria da identidade de gênero, incluindo homens e mulheres transidentificados, concedeu uma ferramenta extra a quem equipara qualquer questionamento a discurso de ódio2. Parte da agressividade direcionada aos chamados críticas e críticos de gênero, segundo Stock, pode ser explicada pela visão de mundo de Butler, para a qual as categorias macho e fêmea, homem e mulher, são automaticamente “excludentes” (p. 46).  

Stock também considera o papel da teoria do ponto de vista e a forma como essa adentrou a cultura popular e os movimentos de justiça social, um elemento importante na tentativa de deslegitimar as críticas. O resultado dessa sequência de momentos-chave é uma “explosão de identidades”, com uma multiplicidade de novos gêneros, alguns um tanto incompreensíveis (p. 49). Parte da toxicidade em torno da questão pode ser entendida como uma consequência dos diversos significados da palavra gênero que acabaram por surgir. Outro empecilho ao diálogo é a crença equivocada de que os direitos legais de pessoas transidentificadas dependem da validade da teoria da identidade de gênero e de seus postulados filosóficos. Postulados teóricos devem estar sujeitos a um exame crítico rigoroso e não há motivos para que tal padrão científico não seja aplicado à teoria da identidade de gênero. Em defesa do debate, Stock insiste que todos têm legitimidade para argumentar sobre a natureza filosófica e as consequências práticas da teoria da identidade de gênero, sobretudo mulheres e homossexuais, grupos diretamente afetados por ela.  

No segundo capítulo, Stock demonstrará que a divisão sexual entre machos e fêmeas é um dos binarismos mais estáveis e previsíveis da natureza. Partindo dos três esquemas de análise reconhecidos – análise dos gametas, análise cromossômica e análise dos conjuntos –, a autora demonstrará a realidade científica do dimorfismo sexual. Todos os três esquemas corroboram com a conclusão da existência de dois sexos distintos, machos e fêmeas. Embora os Distúrbios do Desenvolvimento Sexual (DDS) sejam comumente utilizados para embasar a afirmação de que existem mais do que dois sexos, Stock demonstra como pessoas com DDS podem ser perfeitamente acomodadas dentro do binarismo sexual e como nenhuma das condições reconhecidas de DDS são análogas a existência de um terceiro sexo. Na sequência, a filósofa aborda criticamente cada uma das principais teorias responsáveis por afirmar que o sexo é socialmente construído, como se não houvesse fatos prévios sobre a seleção natural, passando pelas elaborações de Judith Butler, Thomas Laqueur, feministas radicais como Catherine McKinnon e Monique Wittig, chegando à Donna Haraway, para a qual a distinção entre o natural e o artificial se tornou irrelevante.  

No terceiro capítulo, a filósofa se dedica a demonstrar porque o sexo importa para além do motivo mais óbvio de garantir a reprodução da espécie, começando pelo fato de que o sexo feminino é interpretado e moldado por estereótipos restritivos e às vezes contraditórios de feminilidade. Essas restrições promovem experiências particulares às pessoas desses dois grupos, como, por exemplo, o fato do suicídio ser mais comum em pessoas do sexo masculino e a automutilação em pessoas do sexo feminino; o sexo masculino ser mais propenso a problemas com álcool e o feminino a distúrbios alimentares e depressão; pessoas do sexo feminino serem menos propensas a serem promovidas – em parte porque são menos propensas em autopromoção –, entre outros motivos. Reconhecendo as feministas “tábula rasa” (p. 93), para as quais a crença na procedência puramente social das diferenças associadas ao sexo justifica que essas distinções sejam ignoradas e minimizadas, sobretudo por produzirem desigualdades, Stock aponta que ignorar essas diferenças não as faz desaparecer. A autora analisa quatro áreas da vida humana em que a diferença associada ao sexo tem relevância, a despeito dos defensores da teoria da identidade de gênero dizerem que não: medicina, esportes, orientação sexual e efeitos sociais da heterossexualidade no trabalho e nas estatísticas de agressão. Ao analisar cada uma dessas áreas a partir da perspectiva da diferença sexual, a autora conclui que esses efeitos não são influenciados pela identidade de gênero e que, mesmo diante do reconhecimento dessa última, não restam dúvidas quanto à necessidade de reconhecer, monitorar e proteger o sexo na lei, de forma que “sexo e identidade de gênero não devem ser colocados em competição.” (p. 122). 

No capítulo quatro, Stock parte do princípio de que ter uma identidade de gênero desalinhada com o sexo é um fenômeno para o qual a sociedade deve prestar atenção com respeito, o que difere de aceitá-lo de forma acrítica. Em busca de fornecer uma explicação sobre os modelos atuais da identidade de gênero, Stock analisa os quatro mais comuns, incluindo suas vantagens e desvantagens. O primeiro deles, que a autora chama de “bastão de açúcar” (BDA), admite a identidade de gênero como parte integrante e estável do eu, ou seja, uma característica inata. Tal identidade é algo que apenas o indivíduo pode conhecer ou acessar. O segundo é o modelo médico, que interpreta a identidade de gênero como doença ou transtorno cujo principal sintoma é “disforia de gênero” (p. 135). Nesse modelo, há grande ênfase no “tratamento”, que visa alterações nos corpos dos indivíduos como forma de alinhamento a suas mentes, sobretudo por meio de uso contínuo de hormônios do sexo oposto e possíveis cirurgias. O modelo médico fornece a vantagem de fazer com que o processo de “redesignação sexual” seja oferecido pelo governo e por planos de saúde. O terceiro é o modelo da teoria queer, no qual gênero é entendido como performance, com ênfase na influência potencial da autointerpretação sobre a identidade de gênero de cada pessoa, sobretudo a partir de fatores sociais. Dessa perspectiva, as identidades são fluidas, instáveis e podem variar ao longo da vida; não são consideradas inatas e há dezenas de identidades de gênero, indo além do masculino, feminino e não binário (ou andrógino).  

Para Stock, o modelo da “identificação” (p. 142), inspirado pelo trabalho do sociólogo britânico Stuart Hall, é o mais útil para compreensão do fenômeno. Ao aplicar o modelo de identificação à identidade de gênero, é possível compreender que ter uma identidade de gênero feminina desalinhada abarca uma “identificação, no sentido psicológico, com determinada fêmea ou o feminino como ideal ou objeto.” (p.144). O mesmo raciocínio é válido para a identidade de gênero masculina e não binária, ou seja, é pressuposta uma forte identificação com uma pessoa andrógina específica ou com um ideal geral de androginia. Essa forte identificação pode envolver manifestações de disforia, mas a identidade de gênero desalinhada não é compreendida como um sintoma, tampouco como um fato neural ou cerebral atípico ou uma característica inata, não sendo, portanto, um atributo a ser combatido ou afirmado, como propõem os modelos médico, BDA e queer. Por ser considerado um aspecto da “personalidade” e do “eu”, não sendo necessariamente uma característica permanente ou inata, que tampouco está presente em todos nós, não se justifica a relevância para alteração em documentos de identidade, menos ainda para o seu reconhecimento legal como um direito humano fundamental, como afirmam os Princípios De Yogyakarta. Reconhece-se que a identidade de gênero é, por vezes,acompanhada de comportamentos em inconformidade com o sexo, que tendem a ser fonte de discriminação e violência. Mas, como está sendo discutida a análise de um estado psicológico interno como fundamento para possíveis condenações criminais de terceiros, são necessárias diretrizes profissionais nitidamente delineadas, capazes de definir uma maneira não trivial de verificar a presença e a influência da identidade de gênero em um indivíduo em uma determinada situação.  

No capítulo cinco, Stock adentra a atual tendência de tratar pessoas do sexo masculino com identidades de gênero femininas como mulheres em todos os contextos possíveis, bem como as diferentes formas através das quais esse ato politicamente inflamado transmite às mulheres a mensagem de que “os interesses dos machos humanos com identidades de gênero femininas são mais importantes que os seus.”(p. 173). Para ela, tal desrespeito flagrante pode ser observado na decisão da mídia mainstreamem tratar criminosos do sexo masculino com identidade de gênero feminina – incluindo acusados de crimes como estupro e feminicídio –, como mulheres, o que também tem ocorrido nos registros prisionais em alguns países. A despeito das consequências disso em uma realidade na qual são os machos humanos os responsáveis por um número três vezes maior de crimes violentos e sexuais, transmite-se ao público uma mensagem enganosa acerca de qual grupo tem majoritariamente cometido crimes como pedofilia, estupro e agressões violentas. É indispensável, ainda, a existência de um conceito acessível, familiar e útil para tratar das demandas e necessidades de um grupo que forma metade da população mundial e este conceito é “mulher”. É preciso deixar evidente que mulher trans, homem trans, mulher e homem são quatro conceitos distintivamente úteis em termos sociais, políticos e legais. 

No capítulo seis, a partir do Projeto de Lei de Reconhecimento de Gênero 2004 e dos Certificados de Reconhecimento de Gênero, do Reino Unido, a autora analisa o estabelecimento da ficção jurídica que assume, a despeito da realidade factual, que seres humanos podem realmente mudar de sexo. Assim como na lei, muitas pessoas se comprometeram a agir como se tal alegação fosse verdade. Embora muitas pessoas trans reconheçam que a transidentidade depende do sexo biológico, como Fionne Orlander, que afirma: “sou mulher trans, sou homem; não posso ser um e não ser o outro” (p. 195), e até mesmo discordem ou não vejam relevância na identidade de gênero, qualquer menção à realidade material do sexo é para muitas outras pessoas trans (e não trans) tratada como crime ou insulto. Há vantagens e desvantagens pessoais em imergir na ficção de que algumas pessoas realmentemudam de sexo ou são não binárias. Mas as desvantagens se manifestam em grande escala quando as instituições estabelecem normas coercitivas para garantir que todos estejam imersos sob pena de sanção. Para além disso, a autora argumenta acerca dos riscos implicados no uso da linguagem incongruente em relação ao sexo, como o retardo cognitivo, que pode potencialmente fragilizar a defesa das mulheres no que concerne aos perigos de agressão sexual.  

No capítulo sete, Stock aborda a influência de organizações LGBT, como a Stonewall. Após a conquista da legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo em muitos países, era necessária uma nova missão, sobretudo que fosse capaz de trazer novas fontes de renda. Dessa forma, o apoio popular aos homossexuais e às pessoas em inconformidade com o sexo, conquistado por muitas dessas organizações, foi capitalizado para alavancar a agenda da identidade de gênero. Acrescenta-se a propaganda transativista, por meio de ações como o Dia da Memória Transgênero e infinitas datas de celebração ao longo do ano, bem como a insistência no uso de estatísticas deturpadas de homicídios e suicídios. Esses elementos somados têm conseguido conduzir o público a uma percepção equivocada da realidade envolvendo pessoas transidentificadas. A autora também aborda a influência da objetificação feminina na conclusão de alguns sujeitos de que mulheres trans são literalmente mulheres. Mulheres são representadas, sob essa ótica, como um conjunto de superfícies externas permutáveis, cuja vida interior é de importância insignificante, tornando possível, portanto, que qualquer um que busque adquirir esse conjunto de superfícies externas associados às mulheres afirme que é uma mulher. Tal representação objetificante é elevada ao extremo na pornografia digital, na qual mulheres e meninas são expostas “como objetos a serem manipulados, fodidos, dominados e humilhados” (p. 243). Pessoas que associam, de forma consciente ou não, mulheres a meros objetos ocos e/ou a um conjunto de aparências estão menos propensas a se importar quando mulheres trans, sobretudo as de aparência sexualizada, baseada em estereótipos pornográficos, são classificadas como mulheres pela sociedade. 

No oitavo e último capítulo, Stock oferece quatro orientações opinativas para um ativismo melhor no futuro, considerando que a adoção entusiástica da teoria da identidade de gênero por parte de instituições sociais, academia e governo não beneficia – tampouco representa na totalidade – pessoas transidentificadas para além do ativismo acadêmico e lobista. Do ponto de vista feminista, tal adoção irrestrita tem prejudicado mulheres e sua luta pela conquista de direitos fundamentais e histórico das mulheres, incluindo a visibilização dos problemas e das necessidades particulares desse grupo. Primeiro, a autora aborda a extrema polarização, promovida sobretudo por meio das redes sociais, incapaz de permitir que os movimentos sociais encontrem caminhos para diminuir a toxicidade em torno do debate e propor soluções passíveis de atender, ao menos em alguma medida, aos interesses de ambos os grupos. Segundo, há uma necessidade de os movimentos e organizações de base retomarem seu foco político, já que a diluição de seus propósitos fez muitas delas perderem de vista o grupo social para o qual trabalham. Terceiro, Stock aponta para a necessidade do uso correto da interseccionalidade como ferramenta de análise, e não como forma de construir políticas identitárias incoerentes. Apesar de falarem sobre interseccionalidade no Reino Unido e em outras partes do mundo, os movimentos e organizações falharam em demonstrar sua devida aplicação ao não considerarem as múltiplas realidades de mulheres e meninas em nome de uma assimilação acrítica da teoria da identidade de gênero. Um exemplo são as mulheres pobres, negras e latinas, majoritárias entre a população carcerária feminina, expostas à violência sexual por parte de pessoas do sexo masculino transidentificadas como mulheres alocadas em instalações femininas.  

Por fim, a necessidade do uso de mais dados acadêmicos qualificados e menos alta teoria acadêmica é urgente para embasar decisões públicas dadas as diversas demandas políticas do transativismo, inclusive no campo da chamada medicina afirmativa de gênero para crianças e adolescentes4. Dessa forma, a sujeição da academia à demanda por constantes novidades sensacionalistas, bem como a suscetibilidade de muitos acadêmicos às tendências sociais mais amplas, precisam ser consideradas para compreender a dificuldade da academia em analisar criticamente os pressupostos da teoria da identidade de gênero e suas consequências práticas. A maior propensão à conformidade ideológica, sobretudo quando o campo acadêmico está infundido com uma espécie de propósito ético inerente, colabora para a atual abundância de teorias conformes e a ausência de dados empíricos verificáveis. 

Considero Material Girls: Por que a realidade importa para o feminismo uma obra necessária para a compreensão da encruzilhada na qual se encontram os direitos das mulheres. A defesa do debate feita por Stock é uma reivindicação fundamental para a compreensão do fenômeno transativista contemporâneo, ainda que deixe de fora pontos centrais para a total compreensão do cenário, como a influência da filantropia capitalista nos movimentos sociais e na narrativa midiática, e não adentre a violência patriarcal reacionária dos defensores mais intransigentes da teoria da identidade de gênero, que, em grande medida, tem interditado o diálogo e ignorado as preocupações levantadas por pessoas críticas em qualquer aspecto, sobretudo feministas. Ao mesmo tempo, ao trazer evidências empíricas, Stock colabora para revelar a postura displicente de parte da academia e dos acadêmicos acerca de seus próprios objetos de pesquisa e dos fundamentos básicos da investigação científica, que não deveria ser afetada pela toxicidade e pela retórica inflamada que circundam as políticas de gênero. 

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