Esse ano comemora-se 10 anos da Revolução de Rojava e muita gente nunca ouviu falar sobre ela. Justamente por isso resolvi trazer o tema aqui na coluna. O momento é particularmente importante porque, de um lado, temos um poderoso Estado com desejos imperialistas se concretizando com ajuda da OTAN (Organização Tratado do Atlântico Norte) e sob as sombras da Guerra na Ucrânia. Do outro, um movimento do povo, sobretudo das mulheres e jovens, se empenhando na construção de uma sociedade democrática, ecológica e de libertação das mulheres. Mas se algo tão interessante assim está acontecendo, por que, mesmo depois de uma década, pouquíssimas pessoas sabem da existência de Rojava?
Os motivos são diversos, mas podemos destacar a visão preconceituosa do ocidente sobre o Oriente Médio (orientalismo), que acaba por entender a região como “atrasada” ou presa num ciclo de guerras religiosas incompreensíveis (como se alguma guerra fosse compreensível). Ou ainda pior, um lugar que precisa ser salvo pelos “povos desenvolvidos” do resto do mundo. Também diria que, pelo fato da revolução de Rojava ser uma revolução das mulheres, há um desprezo sexista responsável por garantir o amplo desconhecimento das pessoas sobre o que está acontecendo na Síria. Outro ponto muito importante é o silêncio da mídia ocidental que, assim como os próprios Estados que assinam acordos e tratados de paz, ignoram os crimes cometidos pelo Estado turco contra os curdos em vista de recuperar territórios perdidos ainda no início do século XX, com a queda do Império Otomano.
Contextualizando brevemente, os curdos formam a maior nação sem estado com cerca de 40 milhões de pessoas. Desde o fim do Império Otomano, a população curda, juntamente com minorias étnicas locais, vem sendo perseguida e assimilada nos 4 países que formam o Curdistão: Iraque, Síria, Turquia e Irã. Os movimentos que tomaram as ruas de diversos países no Oriente Médio, conhecidos como Primavera Árabe, desencadearam na Síria uma repressão estatal violenta que resultou numa guerra civil disseminada. Foi nesse momento também que o terrorismo do Estado Islâmico se espalhou rapidamente em diversas regiões.
A questão é que os curdos já estavam politicamente organizados há décadas, lutando contra os projetos de etnicidade empreendidos contra os curdos e outras minorias étnicas nos países que compreendem o Curdistão. Quando a guerra na Síria começou e as regiões Norte e Leste foram abandonadas pelo governo Sírio, que estava mais preocupado em defender sua capital, Damasco, os curdos conseguiram tomar as estruturas e implementar uma forma de política de autogestão e democracia direta livre de Estado, além de expulsar o Estado Islâmico e tomar de volta os territórios. Nessa época, as mulheres curdas segurando armas estamparam jornais ao redor do mundo.
Mas o papel das mulheres na revolução de Rojava extrapola em muito a imagem fetichista imposta às guerrilheiras curdas pela mídia ocidental. Na verdade, para serem tratadas como iguais por seus colegas de partido e conseguirem de fato estar nos espaços de tomada de decisão e serem respeitadas, elas precisaram pegar em armas e criar espaços de atuação exclusivos, bem como garantir a participação ativa das mulheres em todas as frentes de organização. Esse vídeo da Vox explica em 5 minutos como Roja foi possível:
Os jovens também têm um papel importante na revolução, mantendo um espírito de vanguarda e radicalidade. “A luta pela autonomia democrática […] em todas as quatro partes do Curdistão, bem como as numerosas resistências da autogestão democrática com base na nação democrática são obras da Juventude Curda, sendo equipada e organizada com o espírito apoísta e consciência. A posição patriótica apropriada e a resistência são representadas pela Juventude. A educação social e a propaganda organizada, a heroica guerrilha em terra, a luta de barricadas na cidade, as revoltas (Serhildans) e a construção da nação democrática; enfim, em todos esses aspectos, a Juventude está assumindo uma posição de liderança. A vanguarda da Juventude é central na revolução da liberdade e da democracia liberdade“, diz o Manifesto da Juventude curdo (Manifesto of the Youth).
Criada em 2012 sobre o nome de Yekîtiya Star, a Kongra Star hoje é uma organização guarda-chuva para os diversos grupos de mulheres, entre eles o YPJ, milícias de autodefesa formadas por mulheres; as Unidades de Proteção Popular, que substituem a política – e são responsáveis por lidar com casos de feminicídio, violência sexual e outras; e o Comitê Jineolojî (a ciência da mulher e da vida, que busca suplantar a ciência positivista inerentemente patriarcal e colonial), cujo trabalho de pesquisa acontece em paralelo com o trabalho em centros educacionais para mulheres, escolas, universidades e movimentos de base. A ecovila de Jinwar, formada apenas por mulheres, também é amplamente conhecida pelos princípios de união das mulheres e ecologia.
As mulheres jovens, em particular, têm sido importantes para avançar nas práticas democráticas e de libertação das mulheres e meninas, oferecendo referências práticas para as mulheres no ocidente lutando pelo fim da hierarquia sexual e das diversas violências cometidas contra mulheres, sobretudo meninas e adolescentes. Embora a realidade das mulheres do Oriente Médio não sejam iguais a de mulheres em outras regiões, os índices de estupro e casamento infantil no Brasil, por exemplo, mais nos aproximam do que nos afastam da realidade das mulheres curdas e as trocas de saberes e práticas por meio de um movimento internacionalista jovem é essencial para pensarmos sociedades democráticas. Inclusive, a Comuna Internacionalista tem promovido trocas com outros países, incluindo o Brasil, para fomentar essa união internacional entre o movimento jovem revolucionário.
No vídeo abaixo, você pode conferir um pedacinho da Longa Marcha da Juventude Pela Liberdade de Öcalan, o líder curdo preso pelo Estado turco desde 1999, que aconteceu no início deste ano.