Enquanto Jiyan Tolhildan, Roj Khabûr e Barîn Botan voltavam do fórum de 10 anos da revolução de Rojava, em Qamlisho, no último dia 22, um drone turco bombardeou o carro onde estavam as mulheres ocasionando o martírio (termo utilizado pelos curdos para se referir aqueles e aquelas que deram sua vida pela revolução) das três. As celebrações dos funerais aconteceram em diversas cidades reunindo milhares de pessoas.
Jiyan Tolhidan, em particular, era reconhecida por sua atuação como uma das comandantes do YPJ (Unidades de Proteção das Mulheres, em português), as milícias de autodefesa formada exclusivamente por mulheres, e da SDF (Syrian Democratic Forces ou Forças Democráticas Sírias, em português). O principal papel de ambas as organizações é proteger os territórios integrantes da AANES (Autonomous Administration of North and East Syria ou Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria, em português) e lutar contra os ataques ao povo curdo e outras minorias étnicas tanto por parte do estado turco e seus aliados, como por parte dos grupos terroristas do Estado Islâmico. Em entrevista à NBC, um oficial militar dos EUA, que pediu anonimato por causa da sensibilidade da situação, afirmou que “não há dúvida de que ela [Tolhidan] salvou vidas americanas no campo de batalha”.
A comandante curda não foi alvo por acaso. Tolhidan esteve envolvida na formação do YPJ, em 2012 e, em 2013, lutou contra os grupos terroristas do Daesh, exercendo uma influência importante em outras mulheres e na manutenção do processo revolucionário de Rojava. Em outro ataque recente no início de julho, o alvo foi Farhad Şibli, vice-presidente do Conselho Executivo da AANES. Seu carro foi atacado por um drone perto da cidade de Sulaymaniyah, no Curdistão do sul (norte do Iraque) quando este voltava de um encontro oficial com o KDP (Partido Democrátido do Curdistão) que, desde o fim da Guerra do Golfo, divide a gestão do KGR (Governo Curdistão Iraquiano) com o PUK (Partido da União Patriótica).
Mas a ofensiva turca, que vem escalonando desde o início da operação Claw Lock, em março, está longe de mirar apenas figuras importantes da organização de Rojava. No último dia 20, aeronaves turcas bombardearam um resort no distrito de Zakho, na região semi-autônoma administrada pelos curdos, local turístico no Curdistão iraquiano onde a Turquia tem bases militares próximas, deixando 9 pessoas mortas e 33 feridos de acordo com o prefeito do distrito, Mushir Mohammed, em entrevista à Associated Press. Todas as vítimas eram cidadãos iraquianos que viajaram para o sul buscando temperaturas amenas no pico do verão.
O Ministério das Relações Exteriores do Iraque disse em um encontro emergencial com o Comitê de Segurança da ONU que “foram documentadas 22.740 violações turcas” em território iraquiano. “A Turquia tem alvos expansionistas por trás de seus ataques e não há acordo militar ou de segurança com Ancara”, disse o ministério. Bagdá também exigiu um pedido de desculpas do lado turco “ao Iraque e a seu povo”. A enviada especial da ONU para o Iraque, Jeanine Hennis-Plasschaert, disse que as partes estão prontas para uma investigação conjunta. O Iraque demanda a retirada de todas as tropas turcas de seu país, mas a resposta da Turquia permanece a mesma: o governo turco continuará perseguindo combatentes que considera terroristas que se refugiam no Iraque.
O ataque a uma zona civil configura crime de guerra. No entanto, a total omissão internacional acerca dos vários crimes dessa natureza levados a frente pelo presidente turco Recep Tayyip Erdoğan (Partido da Justiça e Desenvolvimento – AKP) – que incluem também uso de armas químicas – tem significado passe livre para uma ofensiva militar de caráter inegavelmente imperialista, dado o projeto neo-otomano de Erdogan acerca da recuperação de territórios após o fim do Tratado de Lausanne. Além disso, a própria instrumentalização e fortalecimento dos grupos terroristas por parte da Turquia para combate aos curdos têm servido para ampliar o número de membros e territórios ocupados pelo Estado Islâmico.
Agora, após a Suécia e a Finlândia firmarem um acordo trilateral com a Turquia em vista de obter a carta branca que precisavam para ingressarem na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Erdogan ganha aliados nórdicos em seu projeto político-militar. Entre as demandas turcas para concessão de membresia estão: apoiar a Turquia no combate ao PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), cessar o fornecimento de apoio e armas ao YPG (Unidades de Proteção Popular), coibir grupos de apoio a práticas “terroristas” em seus próprios territórios, facilitar a extradição para a Turquia de pessoas ligadas a “grupos terroristas” e contribuir para expansão da força bélica turca.
Embora Suécia e Finlândia já considerassem o PKK como um grupo terrorista, ambas fornecem armas para o YPG para combate ao Estado Islâmico e, em 2019, junto com vários outros membros da União Europeia, suspenderam a exportação de armamentos para a Turquia após essa fazer incursões militares na Síria para empurrar o YPG para longe das regiões fronteiriças.
Também não havia coibição de demonstração de apoio aos curdos como demandado no presente acordo, que exigiu a ambos os países se comprometerem “a prevenir as atividades do PKK e de todas as outras organizações terroristas e suas extensões, bem como atividades de indivíduos em grupos ou redes afiliados e inspirados nessas organizações terroristas. Turquia, Finlândia e Suécia concordaram em intensificar a cooperação para prevenir as atividades desses grupos terroristas”. Além da evidente criminalização antidemocrática concedida, o ponto das extradições gerou um debate imediato entre os nórdicos. Em comunicado transmitido pela emissora pública SVT, a primeira-ministra sueca, Magdalena Andersson, afirmou: “sei que algumas pessoas estão preocupadas com o fato de começarmos a caçar pessoas e extraditá-las, e acho importante dizer que sempre seguimos as leis e convenções internacionais suecas e nunca extraditamos cidadãos suecos”.
Por sua vez, a Turquia nega que elevar as tensões com os curdos seja uma estratégia com fins eleitorais para consolidar o apoio entre os nacionalistas antes das eleições marcadas para o próximo ano num cenário de forte ascensão do HDP (Partido Democrático dos Povos), comprometido com o projeto político do PKK.
O que dizem os curdos
Em entrevista à agência de notícias turca Hawar News (ANHA), Ilham Ahmed, presidente do Comitê Executivo do Conselho Democrático Sírio (SDC), declarou que o acordo não deve afetar as boas relações estabelecidas com Suécia e Finlândia:
Eles nos forneceram ajuda humanitária por meio da Coalizão Global contra o Estado Islâmico. Nossas relações continuarão, particularmente no contexto do combate ao terror. Milhares de afiliados do ISIS estão atualmente encarcerados em prisões sob o controle da AANES. Os membros da Coalizão Global devem agora assumir mais responsabilidades do que antes. Eles não devem evitar suas responsabilidades diante das ameaças do governo turco. Esta é também uma questão de segurança nacional para eles.
Ilham Ahmed
Enquanto isso, a população curda e outras minorias étnicas que vivem nas regiões seguem se manifestando contra os ataques. Em Rojava, centenas de pessoas residentes em Kobanê, além das instituições e agências da Administração Autônoma, se reuniram em frente ao aeroporto das forças russas para cobrar uma posição do país em relação aos ataques incessantes da Turquia. A demanda acontece, pois, junto com França e Estados Unidos, a Rússia é um dos estados garantidores do acordo de cessar fogo realizado entre os curdos e a Turquia, em 2019. O espaço aéreo do noroeste da Síria é controlado pela Rússia e, portanto, os ataques são feitos com o conhecimento do país.
“O que o estado turco quer de nós curdos? Todos os dias seus drones matam nossos jovens como mártires. Não estamos aqui para que a Rússia nos ajude, estamos aqui para que a Rússia cumpra seu dever, de não apoiar esses ataques e não aceitar ataques contra nós. Se ela não cumprir seu dever, ela sairá daqui. Vamos dar as mãos como curdos e vencer nossa revolução juntos. Não temos medo de ninguém, esta terra é a nossa terra”, afirmou Cihan Bozan, membro do Conselho da Família dos Mártires, durante a manifestação.