Um dos principais relatórios sobre negócios de moda, The State of Fashion, coloca 2018 como um ano de desafios sem precedentes para a indústria a nível global: declínio do movimento nas lojas físicas, competição acirrada para atrair a atenção no universo digital, clientes cada vez mais exigentes, transparência radical e cada vez menos espaço para continuar fazendo “business as usual” quando o assunto é sustentabilidade social e ambiental. Como as empresas, principalmente as gigantes, vão se posicionar daqui para a frente?
A C&A, uma das maiores varejistas de moda do mundo (no Brasil, só atrás da Renner em faturamento), quer garantir sua relevância entre os consumidores frente a tantos desafios. A missão está nas mãos, no Brasil, de Paulo Correa. Formado em engenharia de produção com MBA em Administração, Negócios e Marketing pela Duke University, ele começou a carreira em 1988 em uma empresa carioca de moda de médio porte, onde ficou 12 anos. Depois, foi consultor na McKinsey e passou pela Xerox até que, em 2004, voltou para a indústria da moda como então diretor na C&A Brasil. Em 2015, tornou-se presidente da varejista holandesa que está há 40 em solo brasileiro.
Nesses 13 anos, Paulo viu, e viveu, diversas transformações na indústria da moda e no jeito de fazer negócios. Nos últimos dois anos, inclusive, ele encabeçou algumas inovações, já de olho nos desafios à frente. A C&A está em todas as capitais brasileiras, tem 279 lojas, 15 mil funcionários e faturamento anual de 5,1 bilhões de reais. A empresa nasceu há 176 anos, com os irmãos Clemens e August Brenninkmeijer vendendo produtos de porta em porta em Mettingen, na Alemanha.
De lá para cá, muita coisa mudou, outras se mantêm tradicionalmente iguais — a empresa continua na família Brenninkmeijer e os valores (tradicionais, fundamentados em princípios cristãos) seguem firmes. Há, porém, uma independência de posicionamento em cada país que atua. No Brasil, diz Paulo, a fidelidade ao próprio DNA é ponto central do sucesso da companhia, e sua ponte direta com a moda para além das roupas. Essa vivacidade garantiu à C&A marcos importantes: foi a primeira marca de moda a colocar um negro como garoto propaganda no Brasil, em 1989; a primeira a fazer parcerias com designers famosos e a ter um time de estilistas rodando o mundo em busca de tendências, entre outros. “É quase como um sangue que corre. Fazer as coisas iguais durante muito tempo, causa um tédio por aqui”, diz ele, que estava acompanhado de Rozália Del Gaudio, Gerente Sênior de Comunicação e Sustentabilidade, durante a conversa com o Draft.
A vasta experiência em uma empresa do porte da C&A — com visibilidade, problemas e possibilidades proporcionais ao seu tamanho —, faz com que nenhum assunto seja espinhoso depois para o executivo. Ao menos, não a ponto de transparecer. De forma bastante despojada e tranquila, como pede uma empresa de moda e como se espera de um carioca, a conversa passou por temas como os impactos da produção, as campanhas de marketing polêmicas, o trabalho análogo à escravidão na cadeia produtiva e como a C&A está virando o barco. Isso mesmo. Ela quer deixar de ser uma marca que impõe tendências, se afastando do modelo fast fashion, para se tornar “uma plataforma que propõe modas”. Assim mesmo, no plural, para pessoas plurais.
A seguir, Paulo conta o porquê da sua paixão de trabalhar na C&A, a importância do protagonismo e do compromisso frente às demandas contemporâneas e se arrisca a falar do futuro — único assunto que o tira da zona de conforto — ao olhar para a fusão do mundo digital com o físico no varejo de moda.
Você entende de moda? Você mesmo escolhe suas roupas?
Lógico! (risos.) Desde muito tempo. Não consigo nem imaginar minha mulher comprando roupa para mim.
A C&A é pioneira em diversas ações e iniciativas. Em contrapartida, internamente o ambiente é familiar, quase paternalista. Como equilibrar inovação e tradição? Elas não são contraditórias?
Ninguém fica vivo 175 anos e continua a ser grande e relevante se não se reinventa com a sociedade. Só não concordo com o “quase paternalista” porque o que temos tentado é exatamente trazer uma dimensão muito profissional para a companhia, ao mesmo tempo, sem perder esse DNA de inovação.
Por exemplo, mudamos toda nossa mídia para o digital, e ninguém está fazendo isso no Brasil, então é um movimento aparentemente de espanto. Temos essa ousadia, porque o DNA da marca é jovem, alegre, vibrante, colorido, ousado. Tudo tem esse fio da meada. Se você realmente está focado no que está acontecendo com a sociedade, e mantém sua personalidade, consegue avançar, se reinventar e se adaptar.
O que é o fenômeno do fast fashion e como ele impactou a C&A?
Nosso princípio na C&A é: moda é uma forma de você se expressar para o mundo como indivíduo. A moda tem que estar a serviço dessas escolhas, dessas individualidades. Nossa proposta é ser cada vez menos impositivo e cada vez mais uma plataforma. Como se dizendo: aqui estão várias opções, alternativas, caminhos, estilos. Aquilo que o público olha e gosta muito, nós então caminhamos para oferecer mais. Se o público não gosta, a gente deixa de lado. É essa nossa interpretação, hoje, do fast fashion.
Impactos ambientais e sociais causados pela indústria da moda já existiam antes da explosão do fast fashion, mas é inegável que o modelo de roupas baratas e praticamente descartáveis agrava o problema. Como pensar a sustentabilidade dentro de algo quase “insustentável” por princípio?
Só consigo ver um caminho, e é o caminho que nós estamos trilhando com muita insistência, que é a necessidade de sermos protagonistas nessa conversa. Não adianta só debater. Todo mundo pode fazer algo nesse sentido e a gente tem um papel grande nesse assunto. Na C&A, temos um tripé que sustenta nosso posicionamento de sustentabilidade: produtos mais sustentáveis, cadeia de fornecimento mais sustentável e vidas sustentáveis.
Produtos mais sustentáveis se trata de matérias-primas, processos etc. Por exemplo, hoje a C&A é a maior fabricante e vendedora de produtos com algodão orgânico no mundo (globalmente, 33% das peças de algodão já vêm de produção sem agrotóxicos).
Colocamos na cabeça que deveria ser nosso papel de protagonista nessa história de sustentabilidade
Paulo Correa
Cadeia de fornecimento mais sustentável para garantir que todos os nossos fornecedores estejam alinhados com nossos códigos de conduta. Tudo isso está mapeado e estamos sempre auditando para garantir a continuidade. Vidas sustentáveis para todos envolvidos com a empresa tenham condições dignas de trabalho, garantia de ausência total de trabalho infantil, igualdade de gênero.
A gente entendeu que valeria a pena, tudo atrelado aos valores da empresa que também são seculares nesse sentido, nos posicionarmos e atuarmos nessa dimensão da sustentabilidade de uma maneira completamente diferente da grande maioria das marcas. Não é uma coisa do dia para a noite e, às vezes, você prega no deserto. Mas isso gera vários benefícios. Internamente, somos orgulhosos de trabalhar aqui e saber que nosso trabalho é feito de um jeito consciente e tem um propósito de beneficiar a sociedade para além da dimensão comercial.
Algumas empresas ainda enxergam responsabilidade social e ambiental como custo, normalmente mudando determinados posicionamentos mais pela dor – como foi o caso do trabalho escravo. Você acha que esse mindset está mudando? Como foi dentro da C&A, tiveram muitas barreiras nesse sentido?
A maior parte das inovações, independente de qual seja o assunto, gera uma preocupação de “vai custar mais caro”. Isso acontece todo dia com tudo que é novo. Novo é igual a diferente. Diferente é sair da zona de conforto. Assusta.
Nós tivemos esse tipo de preocupação sim, com certeza. Em algum momento, alguém parou e disse: “Mas pera aí, para fiscalizar todas as oficinas eu vou ter que ter um time. Esse time vai custar mais x”. Sim, mas isso não está em discussão. Nós vamos fazer, isso é um princípio. O algodão orgânico e o certificado Cradle to Cradle (processo em que o algodão é rastreado do início da produção até a venda). Custa mais caro? Custa. Mas o custo é em função da escala. Em determinado momento, a escala traz o custo para o lugar dele. Esperar o mercado se consolidar para agir não é coisa de inovador. É preciso bancar. Em um primeiro momento é preciso investir, mas em tudo na vida é preciso investir. Qualquer coisa, nem que seja tempo, energia, foco. Fazer algo diferente sem investir nada é difícil, né?
Essas ações têm impacto real no negócio da empresa, dado o volume de produção e a complexidade da cadeia produtiva de moda? Já deu tempo de sentir a resposta do público em relação a elas?
É um processo. Começa com alguns pioneiros, depois outros entram, investem também e, daí, começa a ganhar escala. O interessante nesse momento, do digital e das redes sociais, é que a velocidade disso é exponencial. Nossa operação na Alemanha, por exemplo, é muito forte e você vê esse movimento acontecendo numa velocidade muito significativa. O engajamento da população começa a chegar num nível em que as pessoas passam a vetar quem não tem práticas corretas. Aqui, no Brasil, a gente percebe a curva. Vemos as pessoas mais engajadas valorizando muito e talvez as outras pessoas valorizando porque é uma peça boa, bonita, com um preço bacana. Ainda estamos no começo da construção desse comportamento.
Estamos entrando na era da transparência radical e a moda sempre teve um posicionamento meio “caixa preta”. Como a demanda por transparência vai afetar os negócios? Como sair na frente para atender essa nova demanda?
O melhor caminho nessa jornada é o protagonismo.
No futuro, a não-transparência vai eliminar empresas. Toda empresa precisa fazer seu dever de casa muito rapidamente. Adotar uma estratégia reativa não é boa ideia
Paulo Correa
A C&A já tateou questões polêmicas, como na campanha que sugeria uma moda sem gênero, ou no comercial de TV do Dia dos Namorados propondo casais “Misturados”. Essas são causas da marca? Como foi lidar com pressões, internas ou externas, antes e depois da campanha ir ao ar?
Recentemente a gente fez um show na Rua Augusta com a cantora drag queen Pabllo Vittar, que obviamente gera várias opiniões. Mas não é muito diferente do Sebastian em 1989. Naquela época não tinha rede social, hoje tem. Tem uma minoria que, talvez por suas crenças, não se conecta com isso, mas OK. A gente tem zero sofrimento nesse sentido.
A nossa proposta é, como falei, ser uma plataforma: a gente oferece, não queremos ditar nada. Então oferecemos alternativas que a gente entende que são relevantes. Estamos apenas entregando para a sociedade, para o nosso público, o que a maioria ou muitas pessoas estão interessadas, e que têm a ver com o posicionamento da nossa marca: algo jovem, alegre, vibrante, colorido, ousado.
A C&A tem experimentado colocar tecnologia nos pontos de venda, como o “Provador Consultor” (um botão que permite ao cliente chamar uma atendente sem ter de sair do provador). Qual o impacto da transformação digital no varejo? As lojas físicas têm futuro?
Não sou futurólogo então nem me atrevo a falar o que vai acontecer daqui a 50 anos. Mas ainda vai levar algum tempo para as pessoas abrirem mão de experimentar uma peça de roupa antes de comprar. O que vejo como solução, pelo menos para os próximos 10 anos, é essa integração do digital com o físico. A beleza está na conexão dos dois.
As lojas físicas não vão acabar. Poder experimentar um produto de moda sempre vai ter um valor
Paulo Correa
É diferente de um commodity que é o mesmo produto em todos os lugares. No caso da moda, cada produto tem uma história, uma modelagem, uma textura. Vários elementos tornam a decisão muito mais complexa e, quanto mais complexidade, mais a experimentação é importante. No nosso mundo, loja física ainda tem uma história bem legal pela frente.
Também existe o “Conselho Fashion”, uma espécie de mesa redonda com 2 500 clientes que participam de decisões como as novas coleções e campanhas da empresa. Esse contato com o consumidor realmente ensina alguma coisa à empresa?
Super. Essa interação é muito especial para a gente. Nossos times de compras, de marketing, de lojas, não conseguem mais viver sem isso. Temos uma reunião semanal aqui de resultados, toda segunda-feira, e todos os 50 maiores líderes da companhia sentam juntos. Antes de começar a reunião, tem uma sessão clientes. Gravações, análises ou depoimentos de clientes sobre um assunto específico. Tudo começa por eles, a decisão é deles.
É muito mais fácil ouvir, entender o que as pessoas querem do que tentar adivinhar e, depois, perguntar para elas porque não gostaram
Paulo Correa
Parece lógico, mas não foi assim que sempre funcionou.
Um dos grandes temas atuais é a igualdade de gênero e raça. A C&A tem programas ou ações específicas para promover mulheres e negros, por exemplo?
Hoje, 70% das pessoas que trabalham na C&A são mulheres e temos mulheres em todos os níveis da empresa. Até talvez pelo volume, mas também pela nossa cultura, é absolutamente normal nesse sentido e, por isso, não existe nenhuma iniciativa específica. O que temos feito é o Comitê de Diversidade, onde temos discussões e pessoas diversas em todos os âmbitos possíveis. No caso do Instituto C&A, sim, aí temos iniciativas específicas para promoção e inclusão na cadeia produtiva como um todo.
E como a C&A trata as questões de assédio sexual e moral?
Temos o Canal Aberto, que é um meio pelo qual qualquer pessoa pode denunciar qualquer pessoa em relação a qualquer assunto. Este canal é tratado em um fórum extremamente sigiloso, então ninguém toma conhecimento do assunto, a não ser os envolvidos. A partir daí, fazemos a apuração do fato e existem consequências para ações indevidas e que firam o nosso código de conduta e ética. Também temos programas de treinamento e retreinamento do código de conduta e ética, tanto para as pessoas novas, que entram na empresa e querem entender os limites, como para quem já está na empresa.
A C&A foi pioneira ao estender a cobertura do plano médico para casais homoafetivos. Há outras políticas específicas para gays e pessoas trans?
Sim. Neste fim de ano abrimos essa discussão de funcionários trans. A Rozália, nossa Gerente Sênior de Comunicação e Sustentabilidade, pode falar melhor sobre isso. (Rozália, que acompanha a entrevista, diz: “Fizemos uma parceria com a TransEmpregos para incentivar a contratação de profissionais trans. Mas antes disso, em algumas das nossas unidades, já empregamos pessoas trans. E também fazemos todo um treinamento com a equipe de loja para que a pessoa se sinta de fato integrada”).
O time de loja costuma ser formado por jovens que estão em seu primeiro emprego. Nos escritórios, a média de idade de quem entra também é relativamente baixa. Globalmente, as grandes empresas estão perdendo seu poder de atrair e reter os melhores talentos da Geração Y e Z. Qual a estratégia da C&A para continuar atraindo essas pessoas?
A estratégia número 1 é a dimensão de propósito: por que estamos fazendo o que estamos fazendo? O que faz as grandes empresas serem tão questionados nesse sentido é que, muitas vezes, acaba parecendo que o propósito da empresa é gerar o máximo de lucro possível. E, com essa nova geração, isso não é o suficiente. A grande mola de atração que temos hoje é o propósito, e não temos nenhum problema de atração. Toda vez que abrimos programa de trainee recebemos mais de 20 mil inscritos.
Pensando em retenção, as pessoas precisam ver perspectiva de carreira. Se o cara sente que ele não está aprendendo e evoluindo, ele começa a pensar em outras coisas. Focamos muito na dimensão de liderança para desenvolver as pessoas internamente. Porque essa chama tem que estar acesa, quando ela apaga, você perde a pessoa.
Na C&A, assim como em muitas grandes empresas, ganha mais e sobe de cargo quem mostra resultado, daí a competitividade entre funcionários e entre departamentos. Como fazer que executivos, que vivem sob forte pressão, consigam trabalhar de forma colaborativa, não hierarquizada, co-criando projetos, como pedem os novos tempos?
Esse é um super desafio para qualquer empresa de grande porte, que começa a ter estruturas organizacionais e lideranças. Mas quando se centraliza demais a decisão, vai ficar tudo compartimentalizado, cada um fazendo seu pedacinho, e aí quando se vê tem um empurrando para a esquerda, outro para a direita.
Agora, quando todo mundo participa das tomadas de decisão e os envolvidos têm seus interesses, e até seus bônus, linkados a conquistas corporativas como um todo, essa dimensão da colaboração fica muito mais fácil de acontecer. Para mim, isso vem de cima para baixo, honestamente falando. A liderança precisa querer dividir a decisão. No final do dia, a decisão de um grupo de pessoas especialistas é sempre melhor que a decisão de uma pessoa só.
Qual é o seu maior orgulho, em termos profissionais? E qual é o seu maior arrependimento?
Meu maior orgulho é poder trabalhar com uma coisa que eu amo e em uma empresa cujos valores se conectam com os meus. Isso, para mim, é um privilégio. Já o arrependimento tem a ver com perder uma oportunidade de fazer alguma coisa melhor. Muitas vezes, olho para a minha época de consultor e penso em como eu poderia ter tido uma participação ainda mais ativa, para além da recomendação, nos projetos nos quais participei.
Onde a C&A quer estar daqui a cinco anos?
Temos o objetivo de ser uma empresa absolutamente sincronizada com as expectativas das pessoas e ser relevante. Quanto mais vivermos isso de verdade, todo dia, em todos os momentos, mais perene e mais relevante a empresa vai ser para a sociedade. Como consequência, nós vamos ter resultados financeiros ótimos e prosperidade para todos os envolvidos nesse trabalho.
E onde você quer estar daqui a cinco anos?
Honestamente, não sei. Não coloco muito minha energia no futuro, coloco muito minha energia no presente.