Em Ingá (PB), Algodão Agroecológico Fomenta Autonomia no Campo e Agricultura Sem Veneno

No interior da Paraíba, produção de algodão agroecológico ganha força e número de agricultores e agricultoras e hectares plantados segue aumentando. Plantar algodão tem ajudado famílias a terem renda frente às alterações do clima.

Maria do Socorro, mais conhecida como Dona Nenê, planta algodão agroecológico num roçado só seu há dois anos. Ela é uma das agricultoras cultivando a fibra em esquema consorciado de produção orgânica em Ingá, no interior da Paraíba. Nascida e criada no município com pouco mais de 18 mil habitantes, Dona Nenê, assim como a maior parte das agricultoras na região, começou cedo a trabalhar com os pais no roçado e não foi alfabetizada, integrando as estimativas de 11 milhões de brasileiros analfabetos no país segundo dados do IBGE. 

Até pouco tempo, Nenê não tinha nem CPF, documento que precisou tirar para abrir conta em banco e receber pela própria produção. Só agora, com cerca de 60 anos, ela conquistou certa autonomia cívica. Sua idade é estimada, pois ela faz parte do grupo de 3 milhões de brasileiros sem registro civil de nascimento. De  poucas palavras, meio tímida e meio ressabiada, ela conta que divide os cerca de quatro hectares de plantação com o marido, “mas o dinheiro é nosso, tenho minha conta e meu roçado, mas é dele também”, fala com orgulho. As novas perspectivas no campo, possibilitadas pelo algodão agroecológico, têm atraído mulheres em busca de autonomia de volta para a agricultura. Hoje são 17 agricultoras e 21 agricultores plantando algodão agroecológico em 57 hectares. 

Marta Janete (67) é uma das agricultoras que deve voltar a plantar e ajudar a alcançar os objetivos do grupo de ampliar a produção. Para ela, não vai ser a primeira vez trabalhando com o algodão, mas vai ser a primeira vez trabalhando sem veneno. “Eu andava com o veneno nas costas e saia pulverizando. No fim do dia minhas pernas estavam vermelhas e inchadas. Eu acho que devia ser pelo agrotóxico, porque a gente espirrava e o vento trazia de volta pra gente”, relembra. O que impediu Marta de começar antes foi a dificuldade do transporte, como as casas ficam longe do roçado é preciso achar uma forma de ir e vir; as plantações estão dentro de fazendas particulares cuja terra está emprestada aos agricultores para a produção do algodão.

A retomada da produção em escala industrial acontece em meio a dificuldades, traumas e incentivos. Isso porque todo mundo ali trabalhava com algodão. Até o início dos anos 80, quando a chamada “praga do bicudo” dizimou as plantações e quebrou os agricultores. “O bicudo fez companheiras e companheiros irem buscar empregos em outros lugares, muitos nunca mais voltaram”, conta Severino Vicente da Silva (70), mais conhecido como Biu. “Quando começamos a plantar algodão novamente, muitos companheiros falavam que estávamos trabalhando para o bicudo e não acreditavam na possibilidade do algodão agroecológico”.

Biu parou de plantar algodão em 1983, mas em 2020 foi um dos 5 agricultores que toparam voltar a produzir por meio do projeto encabeçado por um grupo composto por marcas, tecelagens e a prefeitura de Ingá, e que envolve as comunidades de Pedra D’água, Distrito de Pontina, Sítio Pontina, Sítio Cutias, Fazenda São Paulo, Sítio Cururu, Fazenda Umatai, Sítio Pedra Lavrada e Sítio Piaba.

Maria do Socorro (Dona Nenê)
Severino Vicente da Silva (Biu)
Maria Janete

Como Presidente do Sindicato da Agricultura Familiar, Biu tem a missão de estimular a comunidade a voltar a plantar algodão, mas tal tarefa ficou mais fácil quando ele mesmo ficou totalmente convencido com os frutos de sua primeira colheita. “Plantei somente 5 hectares, mas tive uma ótima safra e ganhei dinheiro. Este ano, já estamos em 46 hectares. Das 43 famílias associadas, 38 já vão colher algodão orgânico em setembro, inclusive a minha família”, comemora.

O grupo recebe assessoria técnica para  agricultura inovadora e agroecológica por meio da Empresa Paraibana de Pesquisa Extensão Rural e Regularização Fundiária  (EMPAER). Desta forma, eles aprendem não só o que é preciso para conseguir certificar devidamente a produção, como também as melhores formas de lidar com o bicudo e isso envolve tanto técnicas de caráter substitutivo, ou seja, usar melado de cana com óleo de algodão ao invés de agrotóxicos, como também plantar nas janelas temporais corretas para que o bicudo não se prolifere. 

Para além do bicudo, a seca

Ingá, assim como outras regiões do semiárido, foi recém castigada com uma estiagem de quase onze anos – até o mês passado, quando choveu demais. “Era cerca de 700, 800 ml de chuva por ano, o que são 800 ml de chuva?”, pontua Antonio Barbosa da Silva (79), conhecido também como Seu Calú. “Aqui a gente tá acostumado com a seca, mas ela durava 4, 5 anos. Desde que nasci, essa foi a primeira vez que ficou tanto tempo sem chover”. Menos pior a seca ter acontecido após a implementação do programa Cisternas, iniciado em 2003 na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), responsável por levar 1 milhão de cisternas para o semiárido brasileiro, e que foi paralisado desde o início da gestão do presidente Jair Bolsonaro (PSL). Menores, as cisternas do programa eram exclusivamente para beber e cozinhar, com 16 mil litros. Agora, o objetivo é ampliar o número de cisternas com capacidade de 50 mil litros destinadas à produção agrícola. 

Assim como Marta Janete, Seu Calú já tinha trabalhado com o algodão e com veneno. “Muita gente ficou doente e muita gente morreu, sinceramente, a gente acha que foi pelo agrotóxico”, relembra. Agora, ele é presidente da Cooperativa dos Agricultores Familiares do Município de Ingá e Região (Itacoop), responsável por agrupar as diversas associações existentes num sistema cooperativista que envolve desde a plantação do algodão até o processamento futuro do óleo de algodão. A próxima missão da cooperativa é conquistar a certificação orgânica para o milho, o feijão e a fava com objetivo de aumentar a renda dos agricultores na hora da venda dos alimentos não utilizados para subsistência, o que ajuda a garantir maior resiliência econômica frente às alterações do clima. 

O longo período de estiagem, por exemplo, veio acompanhado de uma chuva posterior tão intensa quanto inédita Os açudes ficaram cheios novamente e o algodão abriu, mas a maior parte dos agricultores perdeu a produção de feijão. É por isso que o cultivo do algodão consorciado com alimentos é importante. Além de funcionar como barreira de proteção, faz parte da estratégia da segurança alimentar. “Se chover muito, perde o feijão e o milho. Se não chover quase nada, perde a fava. De qualquer forma, o algodão floresce e tem fibra. E com o dinheiro da colheita podemos sustentar a família”, diz Biu. 

Antonio Barbosa da Silva (Seu Calú)
Severino Pedro Nunes
Severino Amaro e Carlos Antônio

Para Severino Pedro Nunes (72), apesar da seca, nunca faltou fava, produção da qual ele se orgulha: “sempre deu para colher alguma coisa, se você ver agora meu roçado, a fava tá linda”. Severino faz parte da turma dos menos convencidos, mas deve aumentar sua produção de algodão para o próximo ano. “Tem que cuidar do roçado e ficar de olho no bicudo, se aparecer tem que enterrar fundo ou queimar”, explica ele. Ele é um dos poucos agricultores cujo filho ficou em Ingá. A maior parte dos jovens saiu da agricultura e foi buscar emprego em outro lugar. Ampliar a renda da agricultura familiar por meio da produção de algodão também é uma forma de reter ou atrair de volta os jovens que saíram da agricultura.

Dois pontos importantes precisam ser destacados no projeto, que se mostram cruciais para manter e ampliar a produção do algodão agroecológico no Brasil. O primeiro é o arranjo produtivo com contrato de compra garantida. Ou seja, toda a safra já está vendida para tecelagens e confecções da Paraíba e de outros Estados e não há risco do agricultor plantar e não ter para quem vender. No caso dos agricultores de Ingá, o valor pago ao agricultor pelo quilo do algodão é o maior do país. Outro ponto é que o grupo tem o próprio banco de sementes com total independência.

O arranjo chamou a atenção da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO/ONU) e do projeto +Algodão, iniciativa executada pela FAO que reúne o governo do Brasil, representado pela Agência Brasileira de Cooperação (ABC/MRE) com instituições como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e os países parceiros no âmbito do Programa de Cooperação Internacional Brasil-FAO. “Constatamos em Ingá uma ótima qualidade técnica do algodão. Nós estamos levando esse conhecimento e esta experiência para outros países da América Latina”, declarou Adriana Gregolin, coordenadora regional do projeto +Algodão.

A articulação paraibana tem objetivo de conseguir suporte do Banco do Nordeste do Brasil (BNB) responsável pelo apoio a mini e pequenos agricultores de algodão em modalidade de financiamento e custeio associado ou isolado. No momento, o BNB já apoia o Dia do Campo, que une agricultores, costureiras e os diversos atores envolvidos no projeto contando, ainda, com um desfile de moda numa passarela montada em meio aos roçados de algodão. O suporte do BNB acontece “principalmente pelo fato do algodão ter sido atividade pujante e tradicional em passado recente na região, além do forte apoio que a gestão pública do município de Ingá está proporcionando aos participantes da cooperativa”, explica Nazareno Nascimento Félix, agente de desenvolvimento do BNB. 

Desfile com peças feitas de algodão agroecológico organizado pela Natural Cotton Collor // Divulgação

Algodão agroecológico, comida e renda

O algodão orgânico cultivado pela agricultura familiar e pelas comunidades quilombolas alcança 1200 quilos por hectare. Na década de 1940 Ingá era o segundo maior produtor de algodão do Brasil. “A retomada da produção em Ingá é um resgate cultural e histórico. Vamos colocar a cidade de volta no mapa do algodão do país”, explica Robério Lopes Burity, prefeito da cidade. A meta da Prefeitura da cidade é torná-la referência brasileira em algodão agroecológico. 

Para cumprir a missão, as ruínas de uma antiga fábrica têxtil de 10.000m² já foram desapropriadas com o objetivo de transformar o local num espaço de  beneficiamento capaz de aproveitar todos os subprodutos do algodão. Com a descaroçadeira, o caroço é separado da pluma do algodão agroecológico. A pluma é destinada aos compradores da indústria têxtil. Com a prensa, o óleo de algodão orgânico extraído do caroço poderá ser vendido para a indústria cosmética e o resíduo da prensagem pode se tornar ração animal. A ideia é que tudo esteja pronto em dois anos. A fábrica será arrendada por dez anos e gerida pela Itacoop. O prefeito aguarda a análise do projeto Cooperar, da Secretaria da Agricultura Familiar e do Desenvolvimento do Semiárido (Seafds), para a saída do segundo galpão, para a etapa do óleo. “Planejamos desta forma restaurar a nossa história e promover a independência dos agricultores, com geração de emprego e renda, fomentando a economia da região, tendo em vista que a cidade de Ingá é um município pólo”, diz Burity. 

Outra iniciativa é gerar valor para o artesanato típico da região. O projeto “Labirinto de Ingá” reúne mulheres em novos caminhos para a técnica artesanal, que estava em decadência na região pelo baixo valor de venda. Reunidas em associação, já estão produzindo para confecções. “O projeto ‘Labirinto de Ingá’ aproxima as mulheres das áreas rurais que moram distantes umas das outras. Isso fortalece o senso de comunidade e de colaboração entre elas”, justifica o atual prefeito. Essas iniciativas somadas ajudam a lidar com o desemprego, sobretudo após o fechamento da fábrica satélite da Alpargatas em Ingá, em 2020. 

Com o algodão, o feijão, a fava, o milho, o jerimum, o artesanato e a costura, Ingá tenta retomar uma cultura perdida e valorizar a agricultura local. É visível que todo fruto do trabalho tem sido colhido com satisfação. Eu mesma não fui permitida de ir embora de mãos vazias: “Tome, você não pode sair daqui sem a fava! Você vai gostar!”, disse Carlos Antonio (57), também agricultor local, me entregando 2 pacotes cheios de fava seca plantada em Ingá sem agrotóxicos. Apesar da lida com a terra sob o sol do semiárido nordestino não ser nada fácil e pouco romântica, o ânimo e o orgulho dos agricultores complementam a paisagem dos roçados agroecológicos de onde saem algodão, comida, borboletas e outros insetos e sorrisos; em outras palavras, vida.

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