Turquia lança nova série de ataques às regiões Norte e Leste da Síria

Administração Autônoma aponta o silêncio da comunidade internacional

População da NES denuncia ataques turcos a instalações vitais da região (DAANES)

Em 25/12, a Turquia iniciou uma série de ataques aéreos em territórios da Administração Autônoma Democrática do Norte e Leste da Síria (DAANES), deixando onze civis mortos e vinte e cinco feridos, incluindo jornalistas e crianças. Segundo informações da mídia local Rojava Information Center (RIC), os ataques atingiram propositalmente infraestruturas importantes, como estações de petróleo e gás responsáveis pelo fornecimento de energia elétrica à população, bem como fábricas de materiais de construção, alimentos e produtos agrícolas, incluindo refinarias de grãos, além de hospitais. Diversas cidades foram afetadas, entre elas Qamishlo, Amude, Kobane e Tirbesp. 

Na noite do último dia 14, a estação de gás e eletricidade de Suwaydiyah foi atingida por nove ataques aéreos. Suwaydiyah é a maior instalação elétrica do Norte e Leste da Síria (NES), responsável por produzir quase metade da eletricidade do cantão de Jazira, no extremo nordeste. Essa nova incisiva acontece menos de três meses depois de uma série de cinco ataques aéreos feitos no local em outubro, que já haviam prejudicado severamente a infraestrutura e deixado milhares de pessoas sem luz. Atualmente, a DANNES estima abrigar cerca de 800.000 estudantes, milhares dos quais estão impossibilitados de frequentarem as escolas e universidades. 

O fornecimento de energia elétrica pela estação de Suwaydiyah também é destinado à produção de petróleo e gás que abastece produções agrícolas, dependentes dos combustíveis para irrigação, colheita e processamento de cereais. Com a segurança alimentar já fragilizada dada a crise econômica e hídrica que atinge a região desde antes do início da guerra na Síria, em 2011, os ataques turcos impõem novas ameaças à população ao tornar a produção de alimentos proibitivamente dispendiosa. Ademais, a suspensão das atividades de 38 padarias públicas por falta de eletricidade e gás está deixando a população desabastecida de pão, um alimento básico e acessível graças ao forte subsídio da DAANES à produção de cereais. 

Dada a severidade do inverno, há igual preocupação com a falta de fornecimento de energia para o aquecimento das moradias, o que afeta especialmente a população em campos de deslocados internos, um grupo altamente dependente dos preços de combustíveis subsidiados. Com os ataques turcos, muitos campos de deslocados da NES já estão sem energia e a preocupaçãos são as pessoas recorrendo a métodos arriscados para gerar calor. O principal órgão de coordenação de ONGs que opera no NES (Fórum de ONGs do NES) alertou ao Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) que: “Com a previsão de escassez iminente de combustível e a inflação nos produtos básicos que se seguirá, as comunidades correm sério risco de não conseguirem ter acesso a combustível, para cozinhar e ter aquecimento, o que pode levar a mortes evitáveis em condições de quase congelamento”.

Transformadores na usina de gás e eletricidade de Suwaydiyah destruídos (RIC)

A DAANES não tem capacidade econômica e logística para restaurar as infraestruturas destruídas. A guerra prolongada e os incessantes bombardeios turcos impossibilitam investimentos de restauração e, quando feitos, são rapidamente minados por novos bombardeios. Por sua vez, o embargo sofrido pela NES por parte da Turquia, Síria, Irã e Iraque impossibilita a chegada de muitas matérias-primas e materiais necessários à restauração. O Fórum de ONGs da NES apelou para que a comunidade internacional negocie uma solução política capaz de pôr fim aos repetidos ataques às estruturas civis vitais, e que também aumentam a insegurança de toda a população e dos agentes humanitários na região.

Por sua vez, a Turquia afirma que os ataques são uma resposta às operações do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) contra bases das Forças Armadas Turcas (TAF) nas montanhas do Curdistão iraquiano em 23 de dezembro, que deixou ao menos doze soldados turcos mortos. O presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan (Partido da Justiça e Desenvolvimento – AKP), referiu-se aos ataques à TAF como “terroristas” enquanto o Ministério da Defesa turco anunciou que os ataques aéreos nas regiões sírias tinham como objetivo garantir a “segurança das fronteiras”. No entanto, a Administração Autônoma Democrática do Norte e Leste da Síria já reiterou por diversas vezes que as instituições políticas e militares da DAANES não estão ligadas ao PKK, ao contrário do que afirma a Turquia. 

Casa de civil em chamas após bombardeio na área rural de Gilberti (RIC)

Os ataques enfraquecem o combate ao Estado Islâmico 

Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, Berivan Khaled, co-presidente da DAANES, afirmou que vê o desejo de criar instabilidade e gerar medo como uma das principais motivações dos ataques turcos. Para a co-presidente, “o estado turco não aceita o sistema democrático [da DAANES]. O povo da NES está sob um guarda-chuva democrático, baseado na irmandade dos povos e no conceito de nação democrática, que é a antítese das orientações e da política da Turquia. Portanto, a prioridade do Estado turco é ser hostil ao nosso povo”. 

Desde o início do que se convencionou a chamar de Revolução de Rojava, em 2015, e sobretudo desde o estabelecimento da DAANES, a Turquia ataca sistematicamente diversos locais no norte e leste da Síria, tendo efetivamente ocupado militarmente as regiões de Afrin, Gire Spi e Sere Kaniye, regiões majoritariamente habitadas por curdos e outras minorias étnicas, como os yazidis e assírios. No entanto, o número de regiões civis sob bombardeios turcos aumentou significativamente em 2023. “Isto em si é uma mensagem da Turquia, de sua pretensão em agravar e aprofundar a crise nestas regiões, fazendo a população sofrer. Estas pessoas já enfrentam uma situação financeira difícil, uma vez que a região está há muito tempo em conflitos e guerras. Após os ataques, a crise foi intensificada e a situação ficou ainda mais severa”, disse Khaled. 

Além de visar as infraestruturas civis, a Turquia também tem atacado checkpointsdas forças de segurança [Asayish] utilizados para conter o Estado Islâmico (EI). Para Khaled, os ataques aos checkpoints dão oportunidade ao EI de se reorganizar: “Estes ataques em si são mensagens de que o objetivo da Turquia é preparar o caminho para o EI e criar um ambiente adequado para o seu renascimento”. Os ataques são uma ameaça sobretudo nas áreas onde há campos e prisões de combatentes do EI, como al-roj e al-hoe. Embora o avanço do grupo na Síria tenha sido contido com a derrota do califado pelas forças curdas, sobretudo por meio das Unidades de Proteção do Povo (YPJ) e Unidades de Proteção das Mulheres (YPG), bem como pelas Forças de Defesa Síria (SDF), as atividades do Estado Islâmico não cessaram e seguem sendo uma ameaça para a população local, sobretudo porque vários combatentes do EI não são aceitos de volta em seus países. A decisão em conjunto com a Coligação Internacional, que inclui, entre outros países, os Estados Unidos, é que os combatentes do EI sejam repatriados e julgados em sua terra natal. Mas até o momento, segundo o Kurdish Peace Institute, diversos países como França, Alemanha, Canadá, Austrália, Bélgica e Reino Unido não repatriaram um único homem sequer. Isso obriga a DAANES a lidar com milhares de extremistas e suas famílias, sem apoio internacional e sem recursos. 

Silêncio da comunidade internacional 

Embora ataques em zonas civis configurem crime de guerra, a total omissão internacional acerca dos vários crimes dessa natureza levados adiante pelo presidente turco tem garantido passe livre para uma ofensiva militar de caráter imperialista, dado o projeto neo-otomano de Erdogan acerca da recuperação de territórios após o fim do Tratado de Lausanne. Em entrevista ao RIC, Ilham Ahmedpolítica curda e ex co-presidente executiva do Conselho Democrático Sírio (SDC), afirmou que a Turquia está utilizando a OTAN de duas formas em sua incisiva contra a NES: por um lado, pressiona por novos jatos F-16 para ampliar sua frota bélica, por outro, aproveita o silêncio dos Estados Unidos, interessado em fortalecer a OTAN e as forças militares ocidentais. 

Dado o controle do espaço aéreo Sírio por parte da Rússia, Putin também escolheu conceder caminho aos bombardeios turcos, somando-se aos países da Coligação que permanecem calados. Em comunicado oficial emitido no final de dezembro, a DAANES já havia apelado ao grupo: “Lembramos que somos parceiros da coalizão internacional para combater o terrorismo, que busca eliminá-lo na região e alcançar segurança e estabilidade, pois apelamos à coalizão internacional e à Rússia para que cumpram seu dever de alcançar segurança e estabilidade em nossas regiões e dissuadir o governo turco de ataques tão repetidos que são do interesse do terrorismo e de seus apoiadores”. À Organização das Nações Unidas (ONU), a administração pediu a proteção “dos direitos humanos na Síria em geral, no norte e no leste da Síria em particular, e que a coalizão internacional, a União Europeia e os órgãos das Nações Unidas tenham uma posição clara sobre os ataques do governo turco ao nosso povo”.

O silêncio repercute na mídia. Enquanto parte importante da cobertura jornalística está dedicada aos diversos conflitos que estão ocorrendo no Oriente Médio, não há menção aos ataques diários turcos na região da NES e suas consequências para a população local. Um exemplo que ilustra a situação é uma reportagem do The Guardian, que chega a mencionar ataques a células do EI na Síria, mas não à NES. Por sua vez, a ausência de cobertura midiática colabora para a inação da comunidade internacional. 

“Apelamos sempre a todas as organizações e instituições de direitos humanos, às potências internacionais e à comunidade [internacional]. Mas, infelizmente, não recebemos resposta. Ninguém se pronunciou ou se posicionou contrário aos ataques. Renovamos o nosso apelo; esperamos que tomem uma posição séria contra estes ataques e protejam estas regiões”, clamou Khaled. No entanto, a co-presidente demonstra confiança na força da população da NES. “Acreditamos que, com a sua vontade, libertaremos as nossas regiões [isto se refere às regiões ocupadas pela Turquia] e traremos a estabilidade de volta”, finalizou ela.

Rojava Information Center (RIC)

Temas