A higienização da maconha

Não dá para falar sobre cannabis sem pautar uma legalização total que ponha fim à tal da "guerra às drogas"

Artigo escrito para o I Hate Flash Zine. Acesse a publicação original por aqui.

Conforme o debate sobre a legalização da maconha para uso medicinal se desenrola, precisamos ficar de olho nas formas de construção discursivas da verdade e o que pode ficar retido na lógica neoliberal, cuja capacidade de criação de novos nichos de acumulação a partir de demandas sociais e políticas opostas ao interesse do capital é indiscutível. Falando de uma forma mais direta, o que temos visto se espalhar como narrativa pró-cannabis tem deixado de lado a “guerra às drogas” que, no Brasil, lota prisões e busca justificar as estatísticas de assassinato de jovens negros e pobres. 

Marcelo Paixão na Marcha da Maconha SP

Nas manchetes abaixo, notem como alguns grupos e movimentos se afastam da palavra maconha – e como a mídia e os veículos no geral tendem a fazer o mesmo. Como se maconha e cannabis fossem coisas diferentes – gerando uma separação não só ideológica, como também prática, do movimento por legalização. Mas cannabis e maconha são a mesmíssima planta. A diferença é que a palavra cannabis foi introduzida no vocabulário mainstream após o grande interesse da indústria farmacêutica nas potencialidades da planta. A cannabis é, na verdade, a maconha higienizada pelo capitalismo neoliberal.

Uma pesquisa rápida sobre notícias sobre maconha e sobre cannabis resultam em manchetes de um lado criminalizante e, de outro, segmento de mercado.

Há quem chame tal afastamento de estratégico – eu digo para vocês que é desserviço. Se afastar da maconha é se afastar do racismo histórico e estrutural que garante o genocídio exercido pelo Estado face à população pobre, negra e periférica, sobretudo jovem, em nome de uma guerra às drogas que nunca foi, realmente, sobre drogas.

Não tem como falarmos desse assunto sem trazermos alguns dados para ilustrar essa conversa e se garantir na discussão. Então vamos a eles. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2019o tráfico de drogas lidera o ranking dos delitos mais comuns entre pessoas encarceradas no país, considerando as pessoas já condenadas e os presos provisórios. Ao mesmo tempo, um levantamento feito pela Pública, que analisou mais de 4 mil sentenças de primeiro grau para o crime de tráfico de drogas julgados na cidade de São Paulo em 2017, mostrou que negros são mais condenados portando menos quantidade de drogas do que brancos. 

Alguns dados do levantamento mostram a racialização do “crime”: enquanto 71% dos negros julgados foram condenados por todas as acusações feitas pelo Ministério Público no processo, entre os brancos, a frequência é menor, de 67%. Embora a frequência de absolvição seja similar – 11% para negros, 10,8% para brancos –, a diferença é de quase 50% a favor dos brancos nas desclassificações para “posse de drogas para consumo pessoal”: 7,7% entre os brancos e 5,3% entre os negros. Ou seja, brancos são liberados como usuários, negros ficam retidos como traficantes – ainda que brancos normalmente estejam portando mais quantidade de “drogas”. 

Essa última informação, em particular, mostra o racismo escancarado já que, pegando a maconha, a apreensão mediana é de 145 gramas entre os negros. Entre os brancos, a apreensão mediana é de 1,14 quilo, ou seja, uma medida quase oito vezes maior. Conseguem perceber o que está em pauta? 

PODE ISSO, ARNALDO?! 

Conforme explicou Cristiano Avila Maronna, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), no comentário sobre o levantamento em entrevista à Exame, “a lei permite que as pessoas sejam condenadas por tráfico de drogas apenas com base em presunção. Não se exige prova de que a pessoa vendia”. Cristiano alertou que, sem parâmetros objetivos para diferenciar traficante de usuário, na hora do julgamento costuma prevalecer o entendimento da tríade formada por polícia e justiça criminal (no caso, Ministério Público e magistrados). Quem decide, decide portanto subjetivamente com base nos próprios valores e nos valores da estrutura nos quais se está inserido, ou seja… 

Em seu curso de 1981, “Malfazer, dizer verdadeiro”, Foucault mostra muito bem como o verdadeiro se constrói e não necessariamente representa a verdade. O processo de proibição e agora de legalização da maconha sobretudo para fins medicinais é um exemplo bastante didático da análise do filósofo francês. A mesma planta pode ser doença ou cura, a depender dos interesses em jogo – e da narrativa construída. Historicamente falando, o uso da maconha fez parte de muitas culturas e práticas, inclusive no cristianismo. Achados arqueológicos recentes, e o primeiro no Antigo Oriente Próximo, podem indicar que “seu uso no santuário deve ter desempenhado um papel central nos rituais culturais realizados na região”. 

Marcelo Paixão na Marcha da Maconha SP
Marcelo Paixão na Marcha da Maconha SP

Embora a proibição de psicoativos no geral precise ser analisada dentro de um contexto mais amplo de criminalização dos sujeitos ao longo do desenvolvimento capitalista durante os séculos XVIII e XIX, a proibição da maconha no Brasil, em 1936, está diretamente relacionada à criminalização das pessoas negras. Diversas pesquisas, dissertações e teses abordam o tema sob diferentes perspectivas. No artigo publicado por Edward MacRae (UFBA) e Júlio Assis Simões (USP), os autores mostram como a maconha foi introduzida no Brasil por africanos escravizados, se mantendo como parte importante da cultura negra, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste: 

“Embora já no século 19 houvesse restrições ao uso urbano da substância, ele continuou em diversas regiões do país, sem maiores empecilhos, até 1936. Nessa ocasião sua proibição foi promulgada em todo o território nacional, após violentas campanhas de cunho declaradamente racista que, enfatizando sua origem africana, retratavam o costume de fumar canabis como a “vingança do derrotado”, associavam seus efeitos aos dos opiáceos (daí a utilização da expressão “ópio do pobre”) e apresentavam-no como uma ameaça à “raça brasileira”. Essa proibição muniu as autoridades de novos pretextos para manter a população negra, então considerada “classe perigosa”, sob vigilância. Qualquer negro tornava-se suspeito de ser maconheiro ou traficante e, portanto, passível de ser revistado e detido.”

Em outras palavras, fugir da palavra maconha e da demanda pela legalização do uso recreativo da planta é fomentar um debate meia boca, que pode muito bem resultar numa legalização meramente pró-indústria, garantindo a manutenção da ideologia de guerra às drogas utilizada para justificar as práticas genocidas do Estado, ao mesmo tempo que mantém o discurso moralista e criminalizante, garantindo benefícios substanciais apenas aos industriais interessados em novos nichos de acumulação capitalista. 

Além disso, sejamos pessoas sinceras, quem define o que é tratamento, o que é recreação, o que é terapêutico e sob quais princípios, valores e interesses? O debate e a luta pela legalização da maconha precisam ser levados adiante com conhecimento da história e da realidade do Brasil em se tratando da proibição da planta, sem esquecer para quem serve a separação da maconha e da cannabis. Estamos nessa pela legalização total, não só pela maconha, mas como diz a imagem acima, pela vida das pessoas. 

Marcos Mazzie (capa e montagens)

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